quarta-feira, 20 de abril de 2011

O Snobismo Abortista

Comentário ao texto "Argumentos sobre o Aborto",  de 2 de Março de 2004. O artigo foi publicado na revista de filosofia online Crítica na Rede, assinado por Pedro Madeira, King´s College London. Por motivos óbvios, apenas tratarei das objecções levantadas aos argumentos contra o aborto e da argumentação produzida a favor da sua legalização.  

«É frequentemente dito que o aborto é errado "porque vai contra a dignidade da pessoa humana", ou "por causa da santidade da vida humana". Este é um daqueles argumentos que me deixam a coçar a cabeça, tentando descobrir o que é que alguém poderá estar a querer dizer com isto.»

Ignorância sobre o argumento que se pretende criticar,  não o refuta. Se é frequentemente dito que o aborto é errado por causa de X, alegar que não se sabe o que isso quer dizer, não demonstra a falsidade de X. É só um problema de ignorância assumida que cabe resolver a quem a confessa.

«A interpretação mais caridosa é, talvez, a interpretação religiosa, segundo a qual a única coisa que este "argumento" diz é que é atribuída uma alma ao feto no momento da concepção, pelo que é imoral matá-lo em qualquer momento da gravidez.»

Não se identificou qualquer argumento (mas duas sentenças) e ainda assim tenta-se criticá-lo com "interpretação". As  afirmações em causa só podem ser verdadeiras ou falsas. Sem apontar um único argumento invocado por quem defende a sua veracidade, de nada  serve interpretar que isso significa que se está a dizer que é atribuída uma alma no momento da concepção. Antes de mais,  a posição de  que abortar é errado porque vai contra a dignidade/santidade da vida humana, parte de premissas muito mais simples:

-Abortar é matar um ser humano.
-Um ser humano tem dignidade intrínseca, o seu direito à vida é ínviolável ( sagrado).

 Alegar que  ninguém sabe muito bem o que é a alma, significa que se está a acrescentar mais uma:

-A vida humana só é digna e sagrada, se a pessoa tiver uma alma.

 Então, cabe a quem levanta esse problema e diz que o "argumento" da dignidade sagrada da vida humana é mau,  demonstrar a veracidade do seguinte:

- A vida humana só é digna e sagrada se a pessoa tiver uma alma.
- A pessoa não tem alma.
- Logo é falsa a afirmação de que abortar é errado por atentar contra a dignidade e santidade da vida humana.

O autor deste texto, não o demonstrou.

«Este argumento talvez seja suficiente para convencer uma pessoa religiosa de que o aborto é imoral. No entanto, dado o seu carácter religioso, não é um argumento que possamos usar contra a legalização do aborto.»

Quando se discute eticamente uma legalização,  o que interessa é se os argumentos contra essa legalização são logicamente inválidos ou válidos e, depois, verdadeiros ou falsos nas suas premissas. Não se podem invalidar e descartar argumentos ( que não se identifica) por serem de "carácter religioso". É que em lado algum consta que "de carácter religioso" seja necessariamente sinónimo de "falso".  A afirmação de que não podemos usar argumentos de carácter religioso contra uma legalização porque eles só convencem pessoas religiosas, pressupõe uma de duas:

a) Argumentos de carácter religioso são necessariamente falsos,
b) Só são válidos argumentos contra uma lei que convençam igualmente toda a população, e não apenas a religiosa.

A primeira implica a defesa de uma ateocracia e que são necessariamente falsas afirnações como "Não Matarás" ( esta é uma prescrição culturalmente religiosa), a segunda que nenhuma lei pode ser eliminada sem consenso total da população.

Da mesma forma que não passa a ser verdadeiro, algo também não passa a ser falso por, supostamente, só convencer religiosos ou ateus. E em momento algum o autor do texto demonstra que só religiosos concordam que a vida humana é sagrada e digna, e que por isso abortar é errado. Pelo contrário, existem ateus contra o aborto  e religiosos a favor do aborto.  

«É de notar, de passagem, que a própria ideia de uma alma a ser "atribuída" (por assim dizer) no momento da concepção é problemática. Não estou a falar no problema de saber o que é, supostamente, uma alma, a sua composição — já nem vou tão longe.»

Na verdade também é problemático ( muito mais) saber como pode um ser sem alma e materialmente determinado, desenvolver-se como autoconsciente livre.  Mas este ponto é irrelevante. Alegar desconhecimento sobre o que é a alma, apenas desfaz a crítica do autor do texto ao espantalho que ele levantou. Dá como "mau argumento" a afirmação da santidade e dignidade da vida humana, pelo método:

1- Desconheço o que se quer dizer com isso.
2- Interpreto que se está a dizer que a vida humana tem alma.
3- É um problema a entrada de uma alma no momento da concepção, mas não sei o que é uma alma, e não vou por aí.

Resumindo, é um apelo à ignorância: não sei o que se quer dizer com isto, então isto é um mau argumento.  Ora, a objectividade e validade de qualquer argumento, não depende daquilo que o seu crítico diz pessoalmente desconhecer ou recusar.

Logicamente, a conclusão do autor do texto só poderia ser: não sei se o argumento é bom ou mau. O que seria um problema dele, e não do argumento.

«O problema é o de que não há um momento preciso em que se dá a concepção.»

Se não há um momento preciso em que a concepção se dá, então a concepção nunca se dá, pois o termo concepção refere-se a algo objectivo que só se pode  realizar em dado momento. Se a concepção "se dá", ela só se pode dar num momento preciso, pois é assim com todas as coisas que se dão.

Outra coisa seria dizer que não se consegue IDENTIFICAR o momento preciso em que a concepção se dá. O que também é  falso. A concepção dá-se com a fertilização do óvulo pelo espermatozóide e a ciência já identificou uma coisa que se chama bloqueio rápido da poliespermia. Mas mesmo sendo verdade que ninguém conseguia identificar o momento preciso da concepção, isso não tornaria a dignidade sagrada da vida humana num "mau argumento".

Quando um médico executa um aborto, faz algo específicamente metódico contra um ser concreto. Partamos do princípio de que esse ser existe, caso contrário ninguém o iria querer submeter ao aborto. Então, quando se afirma a dignidade e santidade da vida, é sobre aquela vida que é destruída. Ela será sagrada e digna, ou não, e será errado matar vida sagrada e digna, ou não, mesmo desconhecendo quando se deu a sua concepção. O que interessa é que no momento preciso do aborto, necessariamente existe alguém. Esse alguém não tem direito absoluto a viver? Este é o ponto, do qual o autor do texto fugiu.

«Essa é apenas uma ilusão. A fertilização é um processo gradual que leva cerca de vinte e duas horas. É dificil perceber em que altura é que a alma supostamente será "atribuída".»

Mais uma vez, o autor do texto diz ter dificuldades de percepção. Isso não refuta argumentos.
Acima argumentei que se a concepção se dá, ela só se pode dar num momento preciso, pois é assim com todas as coisas que se dão. Poderia objectar-se com o caso do "processo gradual" agora invocado pelo autor do texto; mas tomando como verdadeiro que a concepção é um processo que demora cerca de 22 horas, significa que após as cerca de 22 horas, completa-se um seguimento de acções ocorridas em várias momentos, até ao momento final: um novo ser concebido. Então, o autor do texto continua na contradição, pois acaba de identificar um momento preciso em que se dá a concepção.

Agora pergunto, será legítimo um médico executar um aborto contra um ser humano vivo, concreto e já gerado; alegando desconhecer, por exemplo, os fundamentos do tomismo-aristotélico sobre a existência da alma?  Claramente, isso seria um desvio ao problema ético que o acto abortista levanta.

«Uma interpretação menos caridosa deste argumento dirá que, das duas, uma: ou o argumento é simplesmente vácuo — o opositor da legalização consegue pouco mais ao avançá-lo do que aclarar a garganta; ou então o argumento está, pura e simplesmente, a fugir à questão e não há mais nada a dizer.»

Se o autor do texto diz que o argumento é mau, de nada lhe serve colocar o ónus da argumentação no genérico "opositor da legalização", que não nomeia, identifica ou cita. Quem fugiu à questão foi ele, quando diz que um argumento é mau e tenta justificar isso dizendo, basicamente, que não compreende o argumento.

«Dizer que o aborto é imoral porque o feto tem dignidade intrínseca, ou coisa que o valha, é um "conversation-stopper".»

Se o feto tiver dignidade intrínseca, o aborto é imoral. Essa é a discussão. Se o feto for um humano, matá-lo é um crime. Isto não é conversation-stopper, mas o ponto de partida  do problema, e aquilo que temos de pensar. Fingir que a moralidade ou imoralidade do aborto pode ser discutida sem pensar sobre a dignidade intrínseca de quem o procedimento destrói, isso sim, significa um bloqueador da discussão.

«Há um mau argumento usado pelos opositores da legalização do aborto que não é, em bom rigor, um argumento: é apenas o chamado apelo às emoções. Aquando do período imediamente precedente ao referendo, assisti, com algum desconforto, a uma campanha chamada "Não matem o Zézinho", a qual, se não estou em erro, distribuiu vídeos em que eram mostrados abortos verídicos.»

Sim, se alguém expõe imagens de abortos e de bebés em gestação, não estamos perante um argumento. Estamos perante uma descrição da realidade sobre a qual se pretende (pretendia) legislar. Alguém chamar Zézinho a um bebé por nascer, é dar um nome a filho. Uma prática humana generalizada.

Suponho que se quisessem legalizar a perfuração, envenenamento, esmagamento ou decapitação do autor do texto, ele não consideraria um mau argumento a exposição de imagens desses crimes cometidos contra outros adultos, para que as pessoas pensassem melhor se queriam mesmo uma coisa dessas legalizada.

«Também constatei que houve pelo menos um partido que pôs fotografias de bébés sorridentes em outdoors. E, de um modo geral, em vez de se falar em zigoto, embrião, ou feto, falava-se na "criança ainda por nascer".»

O autor do texto não está a tratar de argumentos, mas a censurar as pessoas que lutam contra o aborto, por não se regerem pelo discurso enviesado e politicamente correcto da cartilha pró-direito a abortar. No que se refere a concepção e maternidade, só a militância abortista considera errado, quase um crime, ter a mulher grávida como portadora de uma criança por nascer. Em nenhum outro conceito de puericultura ( médica, informativa, comercial), se trata a gravidez como algo que nada tem a ver com crianças por nascer. É claro que o abortismo só considera isto na teoria, para contornar o problema ético, porque na prática o aborto é sempre exectuado para impedir o nascimento de um criança que está em desenvolvimento. É para a mulher ter este direito, que tais pessoas lutam pelo aborto. Também a grávida que pretende abortar diz "eu não quero ter esta criança".

«É certo que os defensores da legalização também recorriam, aqui ou ali, a linguagem envenada, como por exemplo quando se referiam ao feto como "um amontoado de células". Mas o apelo às emoções por parte dos defensores da legalização não foi, ainda assim, tão descarado como o apelo às emoções por parte dos opositores da legalização.»

Referir  um feto como "amontoado de células", mais do que linguagem envenenada, é uma desumanizar e tornar impessoal a discussão sobre a licítude de matar um ser humano, já gerado e em desenvolvimento no útero materno. Chamar criança a esse ser humano é fazer o oposto. Estará certo quem estiver a descrever melhor a realidade. Será mais correcto chamar "amontoado de células" ou "criança por nascer", a um  ser vivo,  geneticamente autónomo, que foi gerado dois humanos, e que se desenvolve no útero de uma humana?  O autor do texto não demonstrou o erro de considerar um zigoto, feto ou embrião uma criança por nascer, nem o porquê de ser mais censurável tratar um ser humano como tal, do que tratá-lo como "amontoado de células".

«Suspeito que um número considerável de votantes tenham sido influenciados por essas imagens e mudado, consequentemente, as suas intenções de voto. Esta é uma maneira deplorável de conduzir uma campanha.»

Então, o autor do texto considera deplorável que se mostre a verdade do aborto ( imagens reais do acto), numa discussão sobre aborto, e que essa exposição de imagens, verdadeiras, possa levar pessoas a mudar livremente a sua posição sobre aborto. Isto seria o mesmo que considerar deplorável a exposição de imagens de pulmões negros, ou de acidentes de viação, por estas terem o poder de levar fumadores e aceleras a mudar as respectivas intenções.
Só faltava que, para além de não se poder considerar a mulher grávida portadora de uma criança por nascer, as campanhas contra o aborto ainda tivessem de ocultar a verdade para evitar mudanças de intenções de voto a seu favor. Isto é, o autor do texto não refuta argumentos contra o aborto, antes critica as campanhas contra o aborto por conquistarem adeptos para a sua causa, pelo método de expor a verdade.

«Os outros maus argumentos a favor e contra a legalização do aborto que tive a oportunidade de analisar na secção anterior e nesta (e que continuarei a analisar na próxima secção) são apenas isso: maus. Mas o apelo às emoções não é apenas um mau argumento: é um argumento perigoso. É a própria história do século XX que no-lo ensina.»

O autor do texto pode considerar o desconforto pelo visionamento de um aborto como errado ou irracional. Há defensores da legalização do aborto que o fazem, com um sangue-frio incrível. Ou o defensor do direito a abortar tem essa abordagem nazi, ou de nada lhe serve criticar a exposição de imagens do aborto.
Se a emoção negativa é irracional, o problema está em quem se emociona, e não na imagem. Se a emoção negativa é racional, o problema está no aborto, não na imagem que serviu para apelar a uma emoção racional com o objectivo de o evitar.

A referência  à história do século XX é que é, para além de uma acidental piada negra, um apelo desonesto à emoção do medo ( "é um argumento perigoso"), não fundamentado em qualquer facto que não seja a demagogia. Como é óbvio, o perigo nunca esteve na denúncia das imagens dos abortos, eutanásias e genocídios eugénicos cometidos e legalizados pelos socialistas revolucionários do século XX, mas na concretização dessas práticas.

«Acho que a maior parte dos opositores da legalização defende apenas a tese moderada de que o aborto deve apenas ser permitido em caso de violação.»

Infelizmente, é verdade. Mas moderado não é necessariamente verdadeiro e correcto. Há coisas em que a posição radical é a correcta ( não se mata inocentes, etc).
O autor do texto vai cometer a falácia de, a partir do quase consenso social sobre a licítude do aborto em caso de violação,  tentar apontar como mau o argumento do direito à vida:

«Mas há que olhar com atenção para a argumentação geralmente aduzida. Os opositores da legalização dizem que o aborto é errado porque o feto tem o direito à vida. Mas o problema é o de que, se isso é assim, então um feto gerado por violação tem tanto direito à vida como um feto gerado voluntariamente.»

Exactamente. Por isso, os que defendem "excepto no caso de aborto", estão em erro. Um ser humano não ganha direito à vida em função de ter sido desejado ou fruto de um acto livre entre dois adultos. Um ser humano ganha direito à vida, por ser humano.

«O estatuto moral do feto não varia de acordo com o modo como foi gerado.»

Exacto.

«Logo, o simples facto de a mulher não ter gerado o feto voluntariamente em caso de violação não chega para justificar a permissibilidade moral do aborto em caso de violação.»

Correcto.

«Temos de fornecer mais algum argumento para explicar porque é que, no caso da mulher ter sido violada, continuar a gravidez é apenas um dever supererogatório, um dever cujo cumprimento não nos é estritamente exigido.»

Para quem admite o aborto só em caso de violação, o ónus é esse.
«A conclusão de tudo isto é a seguinte: Se o feto tem o direito à vida, então tem-no independentemente de a gravidez ter tido origem num acto voluntário da mulher ou em violacão. Sobre quem acredita que o feto tem o direito à vida recai o fardo de explicar porque é que é permissível recorrer ao aborto em caso de violação.»

Errado. Sobre quem acredita que o feto tem direito à vida, menos no caso de violação, é que recai esse fardo. Por exemplo, eu acredito que o feto tem direito à vida, mas não me recai explicar porque é permissível o aborto em caso de violação, pois eu não considero o aborto em caso de violação permissível.

Portanto, o autor do texto não conseguiu demonstrar a invalidade do argumento do direito à vida. Ele só conseguiu demonstrar a contradição insuperável dos que defendem o direito à vida, com excepção do caso de violação. Não demonstrou que o feto não tem direito à vida; nem demonstrou que o feto não tem direito à vida no caso de concepção por violação. Quem está errado é quem não defende o direito à vida para todos, independemente de como foram gerados. Não é o direito à vida que está errado.

«Um argumento repetido com certa repúdia pelos opositores da legalização é o de que, se legalizamos o aborto, então qualquer dia ainda andamos por aí a matar deficientes mentais e idosos com Alzheimmer." Novamente, isto não passa de retórica. Quem avança este tipo de objecção tem a incumbência de explicar porque é que isso se segue — mas tal nunca acontece.»

Na altura em que o autor do texto escreveu isto já tinhamos aborto eugénico legalizado em Portugal e livros de  História do socialismo do século XX. A  afirmação de que nunca explicaram o seguimento é a repetição dos seus constantes apelos à ignorância. Um argumento não se torna mau, nem inexistente a legalização da eutanásia como paralela ou sequencial à do aborto, só por alguém diz que desconhece essa possibilidade. A questão mais importante é que o aborto em si mesmo é condenável por corresponder à morte de um ser humano. Mesmo que não tivéssemos exemplos de que dele decorre a legalização da eugenia e eutanásia; por si só o aborto já é abominável e ilegítimo.

Mas lendo a sua prosa acima sobre o direito à vida, temos de concluir que o autor do texto sabe que não são apenas aqueles que defendem o direito à vida com excepção do caso de violação, que ficam sem fundamento para ser contra a legalização de excepções ao direito à vida em outras ocasiões. São todos os que fazem excepções no direito à vida, por qualquer motivo. Se o direito à vida não é absoluto e o autor do texto até o considera um mau argumento contra o aborto, porque haveria de ser um bom argumento contra a eutanásia de doentes terminais em sofrimento ou de deficientes profundos irreversíveis?

«Por vezes, fala-se vagamente na emergência de uma "cultura da morte", mas nunca ninguém explica o que isso seja. Estamos perante um conjunto de considerações que são demasiado vagas para poderem ser adequadamente analisadas.»

Mais uma vez, se ele desconhece o que se quer dizer com algo, não pode garantir que isso é um mau argumento. Para tal, precisaria de compreendê-lo e apresentar-lhe refutação. A cultura de morte é fácil de resumir.

«É importante frisar que o facto de sermos a favor do aborto não implica, de modo algum, que sejamos a favor da eutanásia ou da pena de morte.»

O autor do texto sabe bem que o problema está na lógica e coerência das posições defendidas, e não naquilo que cada um pode ser a favor ou contra. Tanto asssim é, que acima ele conseguiu apontar a incoerência dos que defendem o direito à vida, menos nos casos de violação.
Sermos a favor do aborto, implica incapacidade de nos justificarmos contra eutanásia e a pena de morte. O primeiro é cometido contra um ser que não pede para morrer, nem cometeu qualquer crime. Qual o fundamento para sermos contra a morte a pedido e a morte para culpados, quando somos a favor da morte não-desejada por inocentes?

«Imagine que o leitor é a favor do aborto. Poderá, ainda assim, ser contra a eutanásia porque acredita que não é verdade que as pessoas estejam sempre em condições de decidir o que é o melhor para elas.»

Ao que o partidário da eutanásia teria de apontar como hipocrisia, pois o feto não decide nada. E se algumas pessoas não estão sempre em condições de decidir, não significa que nem todas estejam. A lei que permite o aborto, em nome da liberdade da mulher, pressupõe a destruição de outro que não ela. Então, um país com aborto legalizado não tem fundamento para proibir a eutanásia a pedido da própria pessoa. Isto é claro como a água. Pode-se dizer que há pessoas que incoerentemente concordam com o aborto e discordam da eutanásia. Está certo, pode haver (em teoria, na prática é raríssimo). Mas o autor do texto disfarça o problema. A legalização do aborto abre a porta para que outros, alegando os mesmos motivos pró-aborto, legalizam a eutanásia. Se um é moralmente legítimo, o outro também terá de ser. Sem dúvida, este é um  problema que o aborto também levanta.

«Os defensores das touradas costumam acusar os defensores dos direitos dos animais de serem inconsistentes, dado que parece que a maior parte dos defensores dos direitos dos animais são a favor do aborto. Este é um mau argumento porque pressupõe que matar um feto é a mesma coisa que matar cruelmente um touro na arena para gáudio dos espectadores.»

Aqui mistura-se e confunde-se ainda mais.  O autor do texto não identifica os termos em que critica aquilo que diz ser "um mau argumento". O argumento será mau para sermos contra o aborto, para sermos a favor das touradas ou para concluirmos que é incoerente ser contra as touradas e simultaneamente a favor do aborto? De qualquer maneira, a justificação para o argumento ser mau foi circular. É mau porque o autor do texto considera que matar um feto não é a mesma coisa que matar um touro num espectáculo. Mas isso, sendo verdade, até pode reforçar a incoerência da posição "anti-tourada e pró-aborto".  Por exemplo, pode dar-se o caso de matar um feto humano não ser a mesma coisa que matar um touro, por um feto humano, ao contrário do touro, ter direito à vida. Logo, seria pior matar um feto humano do que um touro.
Claro que é isto que está implícito quando se critica a incoerência dos anti-touradas e pró-aborto, e não que matar um touro é o mesmo que matar um feto. E é claro  que para os anti-touradas e pró-aborto, matar um feto não é o mesmo que matar um touro, porque consideram pior matar o touro. Em momento algum o autor do texto argumenta a favor da desigualdade superior do touro em relação ao feto humano. Não fundamentou onde está então a coerência entre sermos contra as touradas e a favor do aborto.

«É possível que haja algum argumento que mostre que é inconsistente ser contra as touradas e ser a favor da legalização — mas eu nunca ouvi nenhum.»

Apelo à ignorância e incredulidade pessoal. Comentários deste tipo num texto sobre um problema ético são verdadeiramente anedóticos. Como se o raciocínio sobre as várias possibilidades e consequências de uma questão ética, tivesse de lhe ser literalmente soprado ao ouvido. A honestidade intelectual exige àquele que argumenta a favor ou contra uma ideia, que exponha as várias possibilidade. O autor do texto descarta injustificadamente, por omissão,  a possibilidade do feto humano ter mais direito à vida do que um touro, e do aborto ser um crime mais grave do que as touradas.

«À partida, nada impede um defensor dos direitos dos animais de ser a favor do aborto. Um defensor dos direitos dos animais poderá até, em princípio, ser contra a realização de abortos em animais, dado que é impossível perguntar ao animal se quer abortar ou não.»

Claro que valorizando-se mais a vida animal do que a humana, e colocando-se como referência do problema ético a vontade do ser gestante, em vez do direito à vida de quem o aborto destrói; nada impede isso. Só que o autor do texto ignora a possibilidade da vida humana ter mais valor do que a animal, e do problema ético do aborto ter por referência  "não é licíto destruir X", em vez de "é lícito destruir X, se Y concordar".
Quando se fundamenta a coerência de uma posição de modo circular ( explicando os pressupostos dessa posição como se eles estivessem acima de qualquer crítica e não houvesse outros a considerar), pode-se dizer que, "à partida nada impede" a defesa do que nos apetecer.

«Os argumentos que fazem uso da potencialidade geralmente têm a seguinte estrutura: o feto é, em potência, um ser humano; todos os seres humanos, quer sejam apenas seres humanos em potência ou não, têm o direito à vida; logo, o feto tem o direito à vida. Este é um mau argumento porque foge à questão.»

Este é realmente um mau argumento porque está em contradição com a biologia. O feto não é, em potência, um ser humano. O feto é, de facto, um ser humano.

«Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas.»

Se é cidadão, tem o direito de se candidatar à presidência. E se o feto é humano, como é, tem o direito a viver. Neste momento, eu não sou presidente da república, mas sou humano desde que fui concebido. Desde que existo.

«Poderá ser objectado que estou simplesmente a fugir à questão: a analogia não funciona — o feto tem o direito à vida desde a concepção, mas eu só adquirirei o estatuto de Comandante Supremo das Forças Armadas caso venha a ser eleito Presidente da República.»

Exacto.

«O problema com esta objecção é que foge, ela própria, à questão! Se estivéssemos desde logo a partir do princípio de que o feto tem o direito à vida desde a concepção, então para que é que precisaríamos de invocar o estatuto de potencialidade do feto?»

Não precisamos. O autor do texto devia  ter antes analisado a possibilidade de existir o direito à vida desde a concepção, pela hipótese de a partir desse momento termos, não um potencial, mas um ser humano de facto. Algo que a biologia confirma como verdade.

«Aquele a que podemos chamar "o argumento dos dois minutos" faz o percurso inverso. Primeiro, nota-se que a criança, quando nasce, tem o direito à vida. Depois, acrescenta-se que não há grande diferença entre a criança dois minutos antes de nascer e agora, que acabou de nascer. Isso significa, certamente, que tinha o mesmo direito à vida dois minutos antes de nascer. E, se a coisa é assim, então certamente também teria o direito à vida quatro minutos antes de nascer. E por aí fora até ao momento da concepção.»

Sim, este é um argumento poderoso contra o aborto. Exige ao defensor da sua legalização que fundamente quando nos tornamos humanos e com direito à vida. Se diz que não é na concepção, tem de  dizer quando é. Só a partir desse limite será licíto abortar.

«Este argumento é falacioso. Para ver que é, basta pensar no seguinte argumento análogo, que é claramente falacioso: O Jorge não é careca; o Zé tem menos um cabelo na cabeca do que o Jorge; logo, o Zé também não é careca. O Eduardo tem menos um cabelo na cabeça do que o Zé; logo, o Eduardo também não é careca. E, como a diferença de um cabelo não parece ser suficente para delimitar a fronteira entre os carecas e os não carecas, chegamos ao caso do Manuel, que não tem qualquer cabelo na cabeça. Para sermos consistentes, devemos dizer que o Manuel também não é careca, o que é claramente falso.»

O exemplo não é análogo, é anedótico e sem sentido. Careca é um conceito vago e dúbio. Tanto se pode referir a uma pessoa com mais ou menos cabelo ou  uma sem qualquer cabelo. O conceito de ser humano não é vago. Não há pessoas com mais e menos ADN humano. Ou somos humanos, ou não somos.
O recém-nascido tem direito à vida, não por ter nascido ( larvas também nascem), mas por ser humano. Na concepção ( fertilização do óvulo por um espermatozóide), surgiu esse ser humano. Portanto, continua a caber ao defensor do aborto o ónus de explicar porque não é um dever garantir o direito à vida desde a concepção.

«Em ambos os casos, a falácia é a mesma. O facto de haver casos de fronteira não significa que não haja casos em que seja fácil dar uma solução.»

A fronteira entre humano e não-humano está solucionada pela biologia: ser vivo, com organismo próprio e  ADN humano  A fronteira entre careca e não-careca é uma convenção.
Ou o aborto corresponde à morte de um ser humano, ou não. Isto torna a discussão do aborto de natureza ética. Considerar careca  uma pessoa com mais ou menos cabelo, não é um problema ético.

«O facto de haver pessoas acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas não significa que não haja pessoas que são decididamente carecas ou decididamente não carecas. Do mesmo modo, do facto de que um recém-nascido tem o direito à vida não se segue que um feto de dois meses tem o direito à vida.»

O facto de haver seres humanos acerca das quais não saberíamos bem dizer se são ou não carecas, não implica que não possamos saber o que é um ser humano. Se um recém-nascido tem direito à vida por ser humano, segue que um feto de dois meses também tem direito à vida. Pois também é humano.

«Como já tive oportunidade de mencionar, muitas pessoas parecem pensar que há um momento concreto em que se dá a concepção; mas isto é falso. A fertilização é um processo gradual que demora cerca de 22 horas. Primeiro, o espermatozóide penetra no óvulo, deixando a cauda do lado de fora. Nas horas seguintes, o espermatozóide e o óvulo são, ainda, duas coisas distintas, embora o espermatozóide já esteja dentro do óvulo. Só ao fim das ditas 22 horas é que já temos um único objecto: o zigoto.»

Seguindo a lógica do autor, foi apontado um momento em que temos o resultado da concepção. O zigoto, ao fim das ditas 22 horas. A concepção de que falamos, certamente, não é a de um macaco mas de um ser humano. Então, o direito à vida desde a concepção ( que no entendimento do autor ocorre ao fim de 22 horas), não foi demonstrado como "mau argumento". Não foram apresentados motivos para não sermos contra o aborto desde a concepção.

«Mas vamos fingir que não há esta dificuldade: vamos fingir que há um momento concreto em que se dá a concepção. Ainda assim, a concepção não poderia marcar o momento em que o feto adquire o direito à vida. Presumivelmente, um bebé recém-nascido e um ser humano adulto têm algo em comum que lhes garante a ambos o direito à vida. O que é que o zigoto teria em comum com um bébé recém-nascido e com um ser humano adulto que bastaria para lhe atribuirmos, igualmente, o direito à vida? Não conheco qualquer resposta convincente.»

O autor do texto não especifica o que têm em comum um recém-nascido e um ser humano adulto, que garanta a ambos o direito a vida. O que têm em comum os dois, é que os dois são humanos.
De nada serve mais um apelo à ignorância "não conheço qualquer resposta convincente", para invalidar a ideia de que um zigoto, um recém-nascido e um adulto são os três humanos. A resposta à pergunta é clara:  zigoto,  recém-nascido e adulto, são humanos. É em função disto que se defende o direito à vida desde a concepção. Ninguém pode dizer que isto é um mau argumento, ao mesmo tempo que diz que o desconhece. 

«De acordo com uma estimativa conservadora, o feto comeca a ter actividade organizada do córtex cerebral algures entre as 25 semanas e as 32 semanas. (Uma estimativa menos conservadora diria que só às 30 semanas essa actividade tem início.) É a partir desta altura que as ligações sinápticas entre células cerebrais individuais começam a estabelecer-se — até esta altura, essas células eram pequenas ilhas, por assim dizer. Começa a ser possível captar as ondas cerebrais do feto através de electro-encefalogramas. Argumentavelmente, é sensivelmente a partir desta altura que o feto começa a pensar e a ter consciência, algo que tanto um ser humano adulto como um bébé recém-nascido têm (embora em graus diferentes, obviamente). É por isso que penso ser nesta altura que o feto adquire o direito à vida.»

Resumindo, para o autor do texto, o direito à vida existe em função de se pensar e ter consciência:

"É sensivelmente a partir desta altura que o feto começa a pensar e a ter consciência  + "É por isso que penso que nesta altura o feto adquire o direito à vida"

Mas não explicou o porquê do direito à vida estar dependente de pensarmos e termos consciência. É um critério apresentado de forma arbitrária. De  "X existe desde a concepção", segue que "X tem direito a existir desde a concepção". Defende-se o facto "existência" como um direito do existente.
De "X não pensa antes de Y", não segue que "X não tem direito a existir antes de Y". Antes de pensar, X já existe.

«Uma objecção perspicaz a este critério é a de que adoptá-lo parece implicar que as pessoas em coma não têm o direito à vida.»

Certamente.

«Uma resposta curta a esta objecção seria a seguinte: (...)  Tanto o feto antes das 25 semanas como o comatoso são potencialmente seres conscientes. No entanto, são-no em sentidos diferentes."

A objecção não foi referente à potencialidade, mas ao facto do comatoso também estar inconsciente. O critério do autor do texto para definir o direito à vida não foi a potencialidade de consciência, mas o facto da consciência só aparecer em determinada altura. Logo, o autor do texto não está a responder à objecção que o seu critério imediatamente levanta.

«O comatoso é potencialmente um ser consciente num sentido mais forte do que aquele em que o feto é potencialmente um ser consciente. O comatoso é como uma pessoa que sabe francês, embora não esteja a falar francês neste momento, e o feto é como uma pessoa que ainda não aprendeu a falar francês.»

Isto é uma falácia por distinção de emergência. Se é afirmado que o  feto adquire o direito à vida quando passa a ter consciência, resulta daí que se fez depender o direito a viver de ter ou não consciência. A objecção que se coloca imediatamente é apontar que, assim sendo, uma pessoa deixaria de ter direito à vida se entrasse em estado comatoso, perda de consciência. A resposta do autor do texto foi redefinir o seu critério para conceder o direito à vida. De "quando há consciência", passou para "quando já se aprendeu algo". Em vez de refutar a objecção, mudou de critério. Continua sem justificar o porquê de ter dito que o direito à vida depende de se ter consciência, com a agravante de ter agora acrescentado, também injustificadamente, que o direito à vida depende de potencialidade forte de consciência. Pior, não explicou como pode uma aprendizagem, tornar a potencialidade de consciência  mais forte ou mais fraca. Um feto ou adulto não têm, seguramente, mais ou menos potencialidade de se tornarem conscientes, em função de já terem ou não aprendido algo.

»Se somos pró-vida, ficamos sem nenhuma história para contar para explicar porque é que o zigoto tem o direito à vida — só podemos bater na mesa e repetir que o aborto vai contra a dignidade da pessoa humana.»

Isto é completamente falso  Aconselho a leitura do documento que se encontra disponível neste blogue (barra dos "textos referência, à esquerda), "O estatuto ético do zigoto humano", da autoria de Bernardo Motta.  Para início de conversa, relembro:

"Se o ovo fertilizado não é nele mesmo humano, então nunca se poderia tornar num humano porque nada mais é acrescentado a ele [até nascer]" Jérôme Lejeune, geneticista, e responsável pela descoberta do síndrome de Down)

O zigoto tem direito à vida, porque é um ser humano. Quem discorda, contraria verdades em duas áreas:

Biologia:

-Não há ser mais ou menos humano do que outro. Ou se é humano, ou não se é humano. Humanidade não se adquire com tempo ou nutrição, ela é inata. Quem não é humano, não se tornará humano jamais. Por mais tempo que passe e nutrido que seja.

 Ética:

-Todos os seres humanos têm direito à vida.

«Dado que há inumeros critérios possíveis para definir a partir de que altura o feto tem o direito à vida, os opositores da legalização costumam reclamar que, se nem os defensores da legalização estão de acordo acerca do critério a usar, segue-se que devemos ser cautelosos e tratar o feto como se tivesse o direito à vida desde a concepção. Esta objecção falha o alvo»

A defesa de que devemos considerar o direito à vida desde a concepção não é baseada na discórdia dos que sugerem arbitrariamente diferentes momentos, à medida dos seus critérios subjectivos. Devemos considerar o direito à vida desde a concepção, porque a partir desse momento temos um novo ser humano, com informação genética autónoma, que apenas precisará de tempo e nutrição para se desenvolver em função desta. O tempo e a nutrição não são, obviamente, capazes de tornar não-humanos em humanos.
Há na verdade outro argumento para dizermos que devemos tratar o feto como possuidor de direito à vida. Mas ele baseia-se num apelo à coerência e honestidade do proponente ao aborto quando este alega a falsidade de que ninguém sabe quando começa a vida ou que não existe consenso científico sobre essa matéria. Não que isto seja verdade mas que, mesmo que fosse, seria mais um motivo para sermos contra qualquer tipo de aborto. Não é sério alegar poder-se destruir alguém, alegando não se saber se é ou não humano. Como é óbvio, só é lícito destruir algo, com certeza absoluta de que não é um ser humano.

O autor identificou mal esse argumento:

«A estratégia argumentativa é a seguinte: Se o aborto é moralmente permissível, então ao tomar a atitude de não legalizar o aborto estaremos apenas a dificultar desnecessariamente a vida às mulheres que pretendiam abortar. Por outro lado, caso o aborto seja imoral, estaremos a autorizar um assassínio em larga escala.»

Eis a sua tentativa de refutação:

«O problema com este argumento é o de que toma a seguinte forma: "podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade moral da prática X não são convincentes; no entanto, como as consequências morais de X ser imoral seriam terríveis, mais vale abstermo-nos de realizar X"»

Não. De maneira alguma o argumento toma essa forma. A forma é:

-Ainda que eu não tivesse demonstrado que a vida humana se inicia na concepção, se tu alegas que não existe consenso sobre quando começa a humanidade e direito à vida do zigoto/feto/embrião;  não podes ser favorável ao aborto; do qual admites e não excluis a possibilidade real de corresponder à destruição de um ser humano. Um homícidio.

É claro que o argumento não toma a forma "podemos achar que os argumentos contra a permissibilidade moral (...) não são convicentes".  Quem defende este argumento, considera-o em si mesmo um argumento convincente contra a permissibilidade moral do aborto.

«Este é um princípio de decisão a que é comum chamar "princípio de eliminação do risco". A ideia é simples: imagine que o leitor tem várias opções disponíveis. Uma delas tem a possibilidade ínfima de causar um desastre. Por isso, o leitor deve abster-se de escolher esta opção. Não é dificil perceber porque é que não devemos empregar este princípio.»

Não justificou que a possibilidade do aborto corresponder à morte de um ser humano seja  " ínfima".  Só por ignorância se pode dar como ínfíma a possibilidade de um feto ser humano. O aborto não é um método contraceptivo, para evitar uma concepção. É um método de destruição do ser que já foi concebido. No aborto, não se impede que uma mulher engravide, acaba-se com a gravidez de uma mulher. A mulher é humana, o homem que a engravidou é humano. Um ser vivo concebido por dois humanos, em desenvolvimento no ventre de uma humana, com ADN humano, terá possibilidades ínfimas de ser humano?

«Imagine que o leitor é presidente de uma empresa que vende champôs ao domicílio. Um dos seus vendedores vem ter consigo, com ar solene, mas cauteloso, e diz-lhe que acha que a empresa devia deixar de vender o champô "Charmoso". Perplexo com este comentário, dado que o champô Charmoso é, precisamente, o champô mais popular junto dos consumidores, pergunta-lhe, inquieto, quais as suas razões. O vendedor diz-lhe que duas pessoas foram atropeladas, no mesmo dia, logo após usar o dito champô, pelo que a empresa corre o risco de ser processada por vender um champô que dá azar aos utilizadores." Como é óbvio, este é um argumento nada convincente. A coisa certa a fazer é, sem dúvida, continuar a vender o champô Charmoso.»

O princípio da eliminação do risco não é um princípio supersticioso, é um princípio de consideração dos factos e dados reais disponíveis. No caso do aborto, sem dúvida alguma é destruído um ser. Não estamos a falar de azar. Estamos a falar de perfurar, esmagar, esventrar, decepar,  mutilar, desmembrar, decapitar e/ou envenenar um ser. Se nós fazemos isso a um ser humano, cometemos um homicídio. Então, se defendemos a legitimidade desses actos, não podemos alegar dúvidas sobre a natureza de quem os sofrerá. Temos de estar 100% seguros de que o acto não corresponde a matar um ser humano. Só assim o aborto seria legítimo.

«É extremamente escassa a probabilidade de que seja um dia aprovada uma lei (com efeitos retroactivos, ainda por cima) que permita processar uma empresa por vender produtos azarentos. E a probabilidade de que o champo Charmoso seja mesmo azarento é mais escassa ainda.»

A probabilidade de ser humano, um ser vivo gerado por dois humanos, com código genético humano e que se desenvolve no ventre de uma humana;  não será a mesma de um champô provocar azar  Este é um exemplo anedótico que o autor do texto construiu, confuso ou para confundir.

«O problema com o princípio de eliminação do risco está agora à vista: o princípio pede-nos que negligenciemos a qualidade dos argumentos apresentados.»

Não. É precisamente em função do argumento pró-aborto apresentando "ninguém sabe quando começa a vida / não há consenso científico sobre a origem da vida"  que se apela ao princípio da eliminação do risco. Se isso fosse verdade, legitimar o aborto seria legitimar a destruição de algo que admitimos poder ser humano. No caso do champô, sabemos que vendemos champô. No caso do aborto, a ser verdade que não se sabe quando começa a vida, não saberíamos  o que destruímos. ( na verdade sabemos)

«Se houver um argumento qualquer a defender que X é uma consequência possível de fazer Y e que X é uma coisa terrível, então, por pior que esse argumento seja, o melhor é mesmo não fazer Y. Este é um princípio que não parece lá grande ideia adoptar.»

A relação do champô com o azar é realmente um "argumento qualquer", mas a possibilidade do feto ser humano não é um argumento qualquer. Tal como não é a possibilidade de uma pessoa sem cinto de segurança dentro de um carro, continuar a viagem à mesma velocidade, por inércia, em caso de colisão. O princípio da eliminação de riscos, desde crianças evitarem falar com estranhos a perguntar-se "quem é?" antes de abrir a porta, tem sido uma excelente ideia adoptada pela humanidade.

Filho de gato, é gato. Filho de humano, será champô?

«O princípio só entra em cena se houver um empate entre os argumentos a favor da posição de que X é uma coisa terrível e os argumentos a favor da posição de que X não é uma coisa terrível. Quando não se mostrou que há esse empate, é falacioso invocar o princípio de eliminação do risco.»

O grau de risco, a possibilidade algo ser ou não ser, não depende se temos empate de argumentos contra e a favor. Depois de abortar, matámos um ser humano, ou então, não matámos um ser humano. Depois de acender um isqueiro numa sala com odor estranho, ou provocámos uma explosão, ou não provocámos uma explosão. A racionalidade de ser prudente, dado o risco, independe se muitos ou poucos concordam ou discordam se vamos provocar uma explosão ao acender o isqueiro, ou matar um ser humano ao abortar. O problema é a existência da possibilidade e  a sua irreversibilidade e gravidade.
Abortar não pode corresponder a matar um ser humano, e não corresponder. Quem diz não haver certezas sobre a resposta, tem de ser contra o aborto. Como haveria de alegar isso e depois ser a favor? Qual possibilidade de bem justificaria o risco do maior mal possível ( morte de inocentes) ?

«O leitor poderá achar, contudo, que usei o exemplo de uma decisão comercial, ao passo que o princípio se aplica, fundamentalmente, a questões éticas. Esta não é uma crítica justa, dado que a objecção que apresentei contra o argumento é igualmente pertinente quer tentemos aplicá-lo na vida de uma empresa, quer na nossa vida ética quotidiana.»

A afirmação acima é disparatada, porque  o exemplo do champô nem sequer demonstra que a aplicação da eliminação do risco não se aplica a uma empresa. Bastar mudar um pormenor no exemplo. Em vez de queixas dos consumidores de que o champô provocou azar, imaginem o caso de queixas de consumidores de que o champô provocou lesões profundas e dolorosas queimaduras no coro cabeludo. O princípio de eliminação do risco justificaria suspender no imediato as vendas do produto, até termos a certeza de que lavar a cabeça com aquele produto não era causa de queimaduras.

 «Um princípio de decisão aplica-se, supostamente, a todas as decisões que temos de tomar no dia-a-dia, quer estejam relacionadas com a nossa vida moral ou não.»

Pois, o autor do texto escreve como se o seu exemplo anedótico do champô e do azar, realmente tivesse demonstrado a eliminação de risco como um mau princípio de decisão. Dependerá dos casos, como é óbvio. Mas quando queremos contornar a questão do aborto, é mais fácil falar em champôs e azar.

«Mas vou, ainda assim, tomar esta preocupação em linha de conta e apresentar um exemplo de uma questão ética em que o princípio poderia ser empregue. Imagine, então, que aparecia alguém a dizer que as árvores têm direitos. Nestse caso, ele poderia apelar ao princípio de eliminação do risco e dizer: "vocês podem achar que os meus argumentos não são muito convincentes; no entanto, pensem nas terríveis consequências morais de eu estar certo. Estaríamos a autorizar anualmente o assassínio de milhões de arvores inocentes pelo mundo inteiro.»

Mais um exemplo anedótico. Alguém afirmar que uma árvore tem direitos e é "inocente"; exige uma justificação. Claro que neste exemplo a justificação não foi apresentada para ser avaliada. Trata-se de uma anedota para fingir que o caso do aborto é comparável. Mas acontece que o posicionamento contra o aborto não admite que os "meus argumentos não são convincentes". Pelo contrário, a biologia e a ética fornecem-nos dados muito fortes. E se o exemplo da árvore se aplicasse, ele teria de ser colocado na voz de um partidário do abate de árvores com o seguinte mau argumento ( que é o do defensor do aborto):

-Não há certezas sobre se a árvore é ou não humana e se tem ou não direito à vida, por isso acho que devíamos permitir o abate de árvores.

Isto seria um argumento contraproducente. Tal como é do quem tenta legitimar o aborto, alegando desconhecer se ele significa ou não um homicídio.

«Se aceitássemos o princípio de eliminação do risco, então seríamos forçados a deixar de deitar abaixo árvores. Mas não há qualquer razão para fazermos isso, dado que os argumentos a favor da posição de que as árvores tem direitos não são convincentes.»

Por não haver qualquer razão válida para aceitar o princípio da eliminação de risco no abate de árvores, não se conclui que o princípio da eliminação de risco é inválido. O exemplo da árvore é anedótico e falacioso, porque nada nos diz sobre o caso do aborto.
Um argumento ser convincente é uma questão relativa e irrelevante. A questão não é se um argumento nos convence particularmente ( há pessoas convencidas por maus argumentos), mas se é verdadeiro e logicamente válido. Quem pretende refutar argumentos contra o aborto, terá de demonstrar erros objectivos. O melhor argumento contra o aborto, é baseado em conhecimento biológico e ético elementar:  abortar é matar um ser humano, é imoral matar um ser humano, logo é imoral abortar.
O defensor do aborto tem três possibilidades: ou demonstra que abortar não é matar um ser humano; ou que matar certos seres humanos não é  imoral; ou que não é uma certeza que abortar seja matar um ser humano. Nos primeiros dois casos, terá justificado a licítude do aborto. No segundo, tem de ser contra o aborto.

 «As pessoas podem reclamar que o caso das árvores não é semelhante ao do feto, pelo que a analogia não funciona. Não é semelhante?»

Pois não. Acabado de demonstrar.

«Se o leitor pensa isso, é porque está implicitamente a partir do princípio de que o aborto é imoral.»

Não. É o autor do texto quem, contra a evidência científica, dá como ínfima a possibilidade do feto ser humano ( comparável a uma árvore), ao mesmo tempo que dá implicitamente o aborto como moral, sem apresentar qual suposto bem ele permite, como superior à possibilidade de corresponder à  morte de um ser humano.

«No entanto, como já tive oportunidade de mostrar, não há um empate entre os argumentos a favor da posição de que o aborto é uma tragédia moral e os argumentos a favor da posição de que o aborto não é uma tragédia moral.»

É irrelevante se há ou não empate. Ou abortar é imoral, ou não é. Argumentos que defendem posições antagónicas, só podem empatar se forem todos igualmente falsos.  Mas nesse caso, o problema continuaria por resolver. E nesse caso, não se sabendo se o aborto é ou não uma tragédia moral,  a posição sensata é ser contra o aborto. A não ser que se defenda, como vimos, que a possibilidade do aborto ser uma tragédia é equivalente à de um champô provocar azar ou de uma árvore ter direito à vida. Se isso pretendia ser uma defesa válida, tais comparações não foram justificadas.

«Pelo contrário — tanto os argumentos frequentemente usados em debates públicos como os principais argumentos usados na bibliografia de bioética parecem maus

Quando se fala da validade de argumentos, não se trata deles convenceram muitos, poucos ou alguém. Argumentos não "parecem" maus. Ou são maus, ou são bons.

«E, embora alguns argumentos apresentados a favor da legalização do aborto sejam maus, há outros que parecem decisivos.»

O mesmo acima. Argumentos ou são decisivos, ou não são. Pouco importa se "parecem".

«Concluindo: é falacioso estar a usar o princípio da eliminação do risco para argumentar que, por uma questão de precaução, o aborto não deve ser legalizado, dado que não há um empate entre os argumentos contra e a favor.»

Para sermos prudentes e agir em função da eliminação do risco, não interessa se há um empate de argumentos. É que o risco de X acontecer existe em função de factos, não de argumentos. O aborto mata. Isto é um facto. Daqui decorre um risco; pode significar a morte de um ser humano. Não interessa se temos um número equivalente de argumentos a alegar que pode não significar. O problema é se o  risco é real, ou não, e se é mais grave, trágico e irreversível do que o risco de não abortar.
O risco de não abortar, é X, o risco de não abortar é Y. O autor do texto não demonstrou que o risco de abortar é ínfimo e/ou inferior em gravidade ao risco de não abortar.

«enfrentamos agora um grave problema político: o referendo foi realizado há apenas 5 ou 6 anos atrás e a resposta foi "não". Se fizermos outro referendo agora, estaremos a desautorizar os votantes, a tratá-los como crianças. Se, por outro lado, o aborto desta vez for legalizado sem recorrer a um referendo, então não se percebe para que se fez o primeiro referendo: bastava ter legalizado logo e pronto. Como as coisas estão é que não podem continuar: o aborto deve ser legalizado até às vinte e cinco semanas. semanas. Penso que o melhor a fazer é simplesmente legalizar o aborto sem recorrer a um novo referendo."

Conclusão: o autor do texto defende que a morte de bebés com mais de seis meses (24 semanas) de gestação deve ser legalizada, e pronto. É que o seu "argumento" acima, é uma declaração de vontade. O raciocínio que culmina na declaração do dever de legalizar o aborto até às 25 semanas, não tem pés nem cabeça. Coloca o problema:  se houver referendo, somos crianças, se não houver referendo o anterior não serviu para nada. E dá como resposta um non sequitur: as  coisas não podem continuar como estão: o aborto deve ser legalizado até às vinte cinco semanas. Ora,  eu também penso que as coisas não podem continuar como estão, nem como estavam, mas para defender que todas as formas de aborto devem ser ilegalizadas sem qualquer referendo, como defendo, preciso de uma justificação mais forte do que a afirmação da minha vontade em que isso seja feito.

O critério das vinte cinco semanas, em função da consciência, seguindo a lógica do autor do texto também não poderia servir para o que ele pretende. Se, como  diz, não podemos defender o direito à vida desde a concepção, por, suspostamente, não haver um momento em que se dá a concepção. É que  também não está identificado qualquer momento preciso em que se dá a consciência. Pegando no seus termos, algumas pessoas podem pensar que a consciência aparece de um momento para o outro às 25 semanas, mas isso não corresponde à verdade. É um processo.

Na verdade, até começa na fertilização quando o zigoto surge com a informação necessária para, com tempo e nutrição, ganhar consciência. O autor do texto não só não conseguiu demonstrar que o direito à vida, em vez de depender da existência, depende da consciência; como não demonstrou em que hora h o feto humano ganha consciência.


Bebé com 24 semanas de gestação, abortado.


Comentário final
Tenho ainda a criticar o complexo de superioridade do autor do texto. Consegue escrever a montanha de falácias que acima comentei, no mesmo documento em que pretende dar lições de debate e imparcialidade a um país inteiro. No final, conclui-se que a melhor técnica de debate que este sujeito tão culto e progressista conhece, não esquecendo a restante lista de disparates medonhos, é dar argumentos como maus, pelo motivo "não os conheço, nunca ouvi, não percebo o que se quer dizer, etc". A sua imparcialidade leva-o a fazer coisas tão imparciais como censurar o uso de imagens reais do aborto, na discussão sobre o aborto. Um autêntico "Dâmaso Salcede abortista", que não se cansa de colar a sua tese ao que de melhor existe no estrangeiro.
Precisamente, em inglês essa erística argumentativa designa-se por self-selling. Resumidamente; tratou-se disto: temos de ter um debate sério, credível, imparcial e crítico , portanto, agora vou eu falar.  
Pelos vistos, é um método habitual no site Crítica na Rede. Desidério Murcho, a propósito de outro assunto, também já tinha sido comentado por Luciano Ayan quanto à utilização do mesmo truque. É importante qualquer leitor de uma crítica saber de antemão que auto-elogios, ainda por cima desfasados dos raciocínios produzidos, não servem como argumento.


Assina, cidadão português que nunca visitou a Inglaterra.

1 comentário:

  1. Em todo o mundo o aborto continua a ser criminosamente praticado, pessoas cegas e sedentas de “de liberdade individual”, não so pretendem a sua impunidade, como também a aprovação do estado, para assim os serviço Nacional de Saúde pagar os seus crimes com o dinheiro do contribuinte. São pessoas sem personalidade própria. dirigidas pelas organizações internacionais que programa e encorajam, estão por detrás dessa conjura contra a vida. Se a vida não for respeitada e protegida no ventre materno, não o será em nenhuma outra ocasião, pois o seu valor é o mesmo. Se dermos o direito á mãe de matar seu filho, não nascido por ter se tornado num estorvo para ela, seremos forçados num futuro bem próximo a dar direito aos filhos de matarem seus próprios pais por se terem tornado num estorvo para eles. Ambas as situações são absurdas, a solução é a vida, não a morte, retire ao estado o direito por ele usurpado ao povo, de matar os nossos filhos. Diga sim á vida.

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