Porque é que a liberdade das mulheres incomoda tanto outras mulheres?
Foi esta pergunta que Inês Pedrosa colocou há tempos aos leitores da sua crónica
Mulherzinhas. Importa antes de tudo devolver a questão à cronista, não fosse o texto uma confissão da senhora Pedrosa de que, sendo mulher, está incomodada com a liberdade de outras: as que ajudam e aconselham grávidas a não abortar.
Só Inês Pedrosa tem resposta ao porquê de Inês Pedrosa se incomodar com a liberdade dessas outras mulheres e por que se tem em tão má conta ao considerar que
pior do que os homens que se armam em porta-vozes dos sentimentos das mulheres,
só mesmo as mulheres. Assim, as mulheres em geral são elevadas a um patamar mais elevado de exigência moral que os homens, e a autora da declaração em particular rebaixada pela própria à categoria
pior que do que homens. Sendo mulher, mais não fez do que atribuir os piores sentimentos às mulheres que defendem a vida,
armando-se à partida em porta-voz de todas elas. Tem de se decidir:
a) Ou as mulheres não se podem incomodar com os actos livres de outras mulheres. Como se acto livre fosse sinónimo de acto necessariamente correcto e sentir incómodos desse tipo, implicasse quebrar uma regra de irmandade feminista enquanto infracção muito mais grave do que se cometida por um homem.
b) Ou as mulheres podem incomodar-se com a liberdade de outras mulheres, incluindo censurá-las em crónicas de jornais e determinar quais as regras feministas cuja violação as torna piores do que homens.
O espectacular culminar deste raciocínio auto-refutante dá-se quando a cronista classifica as mulheres que agem de tal modo ( ela própria) como participantes em
espectáculo de cancã com plumas de altruísmo, muitos néons e colares de pérolas, enfim, coisa de gosto mais que duvidoso e perigosíssimas consequências. Não há como discordar com tão expressivo auto-retrato.
Inês Pedrosa também afirmou
não se podem dizer coisas como as mulheres estão sozinhas. E que pior ainda é usar adjectivos como
desprotegidas ou
abandonadas porque isso é
catapultar para um
tempo em que as mulheres eram umas
entidades meramente vegetais.
O que há a fazer perante esta pérola? Insistir que, goste Inês Pedrosa ou não, há mesmo mulheres sozinhas, abandonadas e desprotegidas? Dar-lhe a conhecer todo um novo mundo em que ser mulher, criança ou homem não impede os referidos de estarem sujeitos à contingência de desprotegidos, frágeis e abandonados? Não me parece, pura perda de tempo. É muito mais económico realçar o paradoxo do raciocínio:
-Não se pode dizer que as mulheres estão desprotegidas,
-Fazê-lo é considerar a mulher uma
gatinha.
Mas se é assim, Inês Pedrosa está a gritar a plenos pulmões que se sente frágil, desprotegida e abandonada; uma principescamente mimada florzinha de estufa. A um ponto tal que não pode ouvir dizer que alguma mulher esteja em situação de abandono, solidão ou fragilidade; é realidade dura demais para os seus tímpanos. No mundo de Pedrosa, todas as restantes mulheres são tão frágeis ao ponto de ser real o perigo de voltarem ao tempo da suposta domesticação vegetal, se umas quantas da espécie foram consideradas sozinhas, abandonadas e necessitadas de ajuda para levar até ao fim uma gravidez.
Felizmente, não temos razões para generalizar a fraqueza e o pânico feminista de Pedrosa a todas as mulheres, muito menos às abandonadas, sozinhas e desprotegidas que dignamente aceitam a ajuda que precisam e lhes é oferecida. Até porque não estão numa guerra, aí sim, situação em que pedir ajuda ao inimigo significa reconhecer derrota e submissão a um poder inevitavelmente opressor. Mas como Pedrosa parece achar que está mesmo numa guerra, lá faz o seu papel de ministra feministo-iraquiana do interior, promovendo a ideia de que não há, não podem haver, mulheres abandonadas e desprotegidas em Bagdad.
Quanto ao meridiano dos tempos que divide a idade das cavernas em que as mulheres eram consideradas
florzinhas, gatinhas, entidades meramente vegetais ou penugentas, da idade do progresso pedrosoniano em que as mulheres se tornaram supra-humanas imunes ao abandono e solidão (embora susceptíveis à "kriptonite" que é alguém poder dizer que há mulheres sozinhas e abandonadas, o que as catapulta para os tempos de opressão e inferioridade, lembram-se?), o texto de Pedrosa não ajudará a encontrá-lo. São demasiadas piruetas.
Quanto trata de atacar quem ajuda mulheres a não abortar e vê nesta lei um atentado à dignidade da mulher por a empurrar para o aborto, Pedrosa levanta o espantalho:
ninguém no seu perfeito juízo pode acreditar que um brutamontes qualquer arraste a mulher (ou a filha, ou a amante) pelos cabelos para o centro de saúde.
Eis então a razão para não ser aceitável que se diga, ou sequer pense, que há mulheres sozinhas, desprotegidas, abandonadas ou pressionadas para abortar. Se ninguém arrasta mulheres pelos cabelos até aos centros de abortamento, muita sorte têm elas e motivos nenhuns para se queixarem, pedirem ajuda ou denunciarem situações de que há mulheres abandonadas, sozinhas e desprotegidas na gravidez. É irrelevante que legalmente seja viável o objectivo dos maridos, namorados, pais, famílias, amigos ou patrões de mulheres grávidas que as pressionam para o aborto.
Uma gravidez pode ser difícil de aceitar para uma mulher. O estado legalizou e financia abortos. Mas se ninguém as arrasta pelos cabelos para abortar; de modo algum se pode dizer que tornar o aborto fácil é empurrar mulheres desamparadas para o aborto. Até porque no mundo pedrosianano não existem mulheres desamparadas!
Inês Pedrosa contrapõe este cenário maravilhoso em que já ninguém arrasta mulheres pelos cabelos para abortar,
ao contrário do que podia fazer, em total impunidade, quando se tratava de a levar para a abortadeira clandestina. E assim temos que, para além de despenalizar o aborto até às dez semanas, liberalizá-lo e meter todos os contribuintes a pagá-lo, a lei do aborto serviu também para punir os homens que arrastam mulheres pelos cabelos para abortar. Claro, a ser verdade que antes da lei se podia cometer em TOTAL IMPUNIDADE tal acto, como nos quer fazer crer Pedrosa...
Estaria aqui encontrado o referencial do antes e o depois da libertação da mulher, a lei do aborto:
Antes - Mulheres arrastadas pelos cabelos até às abortadeiras clandestinas em total impunidade;
Depois- Nenhuma mulher desprotegida. Garantia absolutamente fiável de Inês Pedrosa:
Nenhuma mulher interrompe uma gravidez por ordem de outrem - nem as que levam pancada durante toda a gravidez.
O problema é que esta absoluta autonomia e libertação da mulher que supostamente se deu depois da lei do aborto, é uma realidade descrita como havendo mulheres que ainda levam pancada e onde h
á homens que proíbem as mulheres de tomar a pílula, para não serem "galdérias"
e que se recusam a usar preservativo porque entendem que as mulheres estão ao seu serviço.
Segundo a brilhante Inês Pedrosa, tudo isso ainda é feito contra as mulheres, mas quando se trata de abortar, a mulher só o faz se quiser. Na sua perspectiva, ninguém vê mulheres na rua a serem arrastadas pelos cabelos para abortar. Apenas há mulheres que até levam pancada durante a gravidez e cujos corpos são utilizados como propriedade dos maridos e companheiros. Então, achar que alguma mulher pode abortar pressionada ou contra a sua vontade, não faz obviamente qualquer sentido. O pensamento de Pedrosa faz, se tivermos fumado coisas maradas em dose apropriada.
Se, de facto, NENHUMA mulher interrompe uma gravidez por ordem de outrem, como haveria a possibilidade inversa de alguma mulher levar uma gravidez até ao fim por ordem de outrem, motivando Inês Pedrosa a alertar para o suposto perigo de que os críticos da lei do aborto querem
um médico, um padre ou um marido a decidir pela mulher?
Decidir pela mulher? Influenciá-la em questões de aborto? Segundo Inês Pedrosa, isso simplesmente não existe. É uma impossibilidade. Até para as que levam pancada durante a gravidez...
Na sua ideia há então mulheres desprotegidas em relação aos malvados defensores da vida intra-uterina, que estão desejosos de decidir pelas grávidas. E para proteger essas mulheres, temos a justiceira Inês Pedrosa com esta magnífica crónica. Pela lógica anteriormente invocada, temos de concluir que ela está a tratar essas mulheres como vegetais, a catapultá-las para tempos machistas, não é?